quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A Combinação Que Mata na F1


Revista Veja 03/05/1994



A associação de pistas inseguras,
carros estáveis e velocidades cada vez
mais altas aumentam os riscos das corridas

O austríaco Roland Ratzenberger e Ayrton Senna foram os primeiros pilotos a encontrar a morte nas curvas da pista de ímola, desde que o circuito passou a fazer parte do calendário oficial da Fórmula 1, em 1980. Mas quarenta pilotos já se acidentaram nessa pista infernal. Apenas em 1982 e 1988 não houve acidentes no circuito italiano. Alguns pilotos, como o italiano Ivan Capelli, tiveram péssimas experiências. Ele bateu nos muros do autódromo nas quatro vezes em que lá correu. Outros saíram ilesos todas as vezes em que passaram por lá. Mas ninguém entrava em ímola dentro de um carro de Fórmula 1 sem uma sombra de medo. A razão é simples. ímola é um dos circuitos mais rápidos do campeonato mundial. Os pilotos mantêm em seu traçado de 5.040 metros e doze curvas médias de velocidade superiores a 200 quilômetros por hora. Em Interlagos, um circuito de média velocidade, eles correm a 195 quilômetros por hora e em Mônaco, de baixa, a velocidade cai para 145 quilômetros por hora. Em ímola, a situação se agrava em curvas como a Tamburello, em que Senna encerrou sua carreira, onde os pilotos passam a mais de 300 quilômetros por hora. "ímola tem duas curvas de altíssima velocidade. Exatamente as duas em que houve os acidentes do Barrichello e do Senna", atesta Roberto Pupo Moreno, ex-piloto da Benetton. "Na Tamburello, entra-se como se fosse uma reta, sem tirar o pé do acelerador." A 300 quilômetros por hora qualquer discussão sobre segurança torna-se muito relativa.
No último fim de semana, Imola candidatou-se ao posto de mais trágico entre todos os circuitos da Fórmula 1. Construída em 1952, nos subúrbios de Bolonha, em território italiano, a pista serve de palco para o Grande Prêmio da República de San Marino, o minúsculo principado incrustado às margens do Mar Adriático, a 20 quilômetros do circuito. No último fim de semana a pista estava em seus piores dias. Cada vez que se abriu, aconteceu um desastre. Na sexta-feira Rubens Barrichello voou pelos ares com sua Jordan. Deu sorte. Um corte na boca, um nariz fraturado e já queria voltar à pista no sábado.
O que começou como desastre na sexta-feira foi promovido a tragédia no sábado, quando o austríaco Roland Ratzenberger, 31 anos, estatelou-se com sua frágil Simtek contra o muro de proteção na curva Villeneuve - a 314 quilômetros por hora. A morte quase instantânea do piloto levou Senna a liderar um movimento para a suspensão dos treinos e até mesmo da corrida, em protesto contra as precárias condições de segurança locais. Os interesses comerciais que fazem girar 100 milhões de dólares a cada Grande Prêmio falaram mais alto e Senna perdeu a parada, para que a tragédia de Imola tivesse seu terceiro ato no domingo. Na sétima volta aconteceu o acidente com Senna.
Cada corrida em Imola é marcada pela seqüência interminável de acidentes, nenhum tão trágico como os do último fim de semana, mas alguns deles igualmente assustadores. Num outro Grande Prêmio de San Marino, em um 1ø de maio de sete anos atrás, também sobre uma Williams, na mesma pista e na mesma curva, Nélson Piquet viveu sua tragédia. O tricampeão sofreu traumatismo craniano, uma torção no joelho esquerdo e escoriações leves pelo corpo. "Durante muito tempo eu tinha pesadelos com o acidente e depois disso mudei minha maneira de dirigir", reconheceu posteriormente o piloto. Dois anos depois foi a vez de o austríaco Gerhard Berger sair da curva Tamburello direto para o muro. Sua Ferrari se incendiou e durante quinze segundos o piloto ficou no meio das chamas, protegido pela roupa antichama que vestia sob o macacão. Se a equipe de salvamento demorasse mais seis segundos, Berger teria morrido. Sobreviveu com queimaduras por todo o corpo e um mês e duas corridas depois estava de volta às pistas
Depois do fim de semana trágico em Imola, as discussões começaram a girar em torno das condições de segurança de autódromos construídos há mais de quarenta anos e das medidas tomadas para tornar os carros ao mesmo tempo mais velozes, econômicos e seguros. Na primeira corrida em Imola, em 1952 os carros desenvolveram 149 quilômetros por hora de velocidade média. A partir de 1970 foram introduzidas duas chicanes, pequenas curvas em ziguezague - as variantes Alta e Bassa - onde antes havia duas retas muito longas, para reduzir a velocidade dos carros nesses trechos. Mas, ao contrário do que se pretendia, a média de velocidade no circuito dispara até atingir os 210 quilômetros por hora atuais, graças ao desenvolvimento tecnológico incorporado pelos carros. No último ano, novas normas introduzidas no regulamento com o propósito de reduzir os custos das equipes proíbem o uso de componentes eletrônicos que tornavam os carros mais estáveis nas pistas, principalmente nas curvas.
Pistas mais rápidas e menos seguras combinam-se hoje com carros mais velozes e menos estáveis. O resultado é o desastre, ou desastres como aconteceram em Imola. "Os carros continuam andando no limite em pistas, que continuam com as mesmas falhas que antes eram compensadas pela suspensão ativa" lamenta-se Lemyr Martins, repórter da Quatro Rodas que acompanha a Fórmula 1 há mais de vinte anos. "Sem os componentes eletrônicos as deficiências dos circuitos se tornaram explícitas e mortais." No item segurança, os carros de Fórmula 1 atingiram um altíssimo padrão. Nos carros atuais os pilotos ficam incrustados em um casulo de fibra de carbono, uma liga metálica ultra-resistente a impactos. O piloto fica amarrado a essa cápsula, chamada de cockpit, que é feita sob medida para se ajustar ao corpo de cada um. Essa armadura sobre rodas explica por que Senna não sofreu nenhuma fratura de membros ou no tórax. "O cockpit da Williams é um dos mais bem construídos da Fórmula 1", garante Roberto Moreno. "É pelo menos dez vezes mais forte do que o cockpit da Simtek, em que morreu Ratzemberger." O grande defeito desses casulos indestrutíveis é que eles não protegem a cabeça do piloto, que fica solta, sem apoio. "Nos carros de Fórmula Indy, o cockpit é mais alto e protege a cabeça do piloto", afirma o paranaense Raul Boesel, piloto de Fórmula Indy com experiência de Fórmula 1. "Na Fórmula 1, tanto a cabeça como parte dos ombros do piloto ficam expostas".
A 300 quilômetros por hora um impacto frontal do carro contra o muro é suficiente para causar a morte do piloto, em conseqüência do choque de desaceleração. Por isso mesmo, além de ser forte e indestrutível, o carro precisa também ser estável para não bater em altas velocidades. Notáveis progressos foram feitos nos últimos anos nesse sentido. O mais eficiente foi, sem dúvida, a suspensão ativa. Com a suspensão ativa um computador faz a compensação das irregularidades do terreno por onde passa o carro de tal forma a mantê-lo grudado ao solo. Com esse dispositivo os carros ganhavam uma estabilidade enorme e podiam fazer curvas que antes eram impensáveis. Além da suspensão, o computador controlava também os freios, para impedir que as rodas travassem numa freada mais brusca, e o acelerador do carro, para impedir que as rodas patinassem quando o piloto apertasse o pedal com mais força.
Equipada com essa parafernália, a Williams ganhou os dois últimos campeonatos mundiais e transformou-se numa categoria à parte: "É um carro do outro mundo", dizia Senna enquanto sonhava em transferir-se da McLaren para o time de Frank Williams. Quando isso aconteceu, no entanto, a Fisa, a entidade que administra o automobilismo no mundo, decidira acabar com a orgia informática que fazia carros do outro mundo. O problema é que essa festa tecnológica exigia também orçamentos de outro mundo. Apenas quatro equipes tinham condições de enfrentar esse desafio - Ferrari, McLaren e Beneton, além da Williams. Mas nenhuma delas tinha conseguido na pista os resultados da equipe inglesa. Por isso, a partir deste ano foi proibido o recurso a qualquer elemento eletrônico em carros da Fórmula 1. Limitou-se também o uso de aerofólios - as barras estabilizadoras colocadas no bico e na traseira dos carros. A largura dos pneus passou de 18 para 15 polegadas, outra medida que diminui a estabilidade das máquinas.
Ao se reduzirem os elementos que davam maior estabilidade, supunha-se que economizaria dinheiro e reduziria a velocidade, sem prejuízo para a velocidade. Ledo engano. Ayrton Senna marcou a última pole position de sua carreira batendo o recorde de volta em Imola. A velocidade de Nigel Mansell para conquistar a pole em 1992 foi de 210,7 quilômetros por hora. Na sexta-feira, Senna atingiu 222,4 quilômetros por hora. "Se ele estivesse usando a suspensão ativa, seria mais difícil acontecer um acidente como esse", diz o engenheiro Francisco Rosa, ex-administrador do Autódromo de Interlagos. "Mas se estivesse com pneus de 18 polegadas estaria ainda mais rápido e o choque teria sido mais violento ainda", completa, para demonstrar que no campo das especulações não existem fronteiras.
A culpa então é mesmo da pista. Certo? Nem tanto. Imola tem alguns defeitos que a tornam mais perigosa do que outras pistas. "A Fisa é rigorosíssima quando vem inspecionar Interlagos ou Jacarepaguá, mas é bastante condescendente quando tem de tratar com as pistas da Europa", reclama Francisco Rosa. Em Imola faltam mais barreiras de pneus para amortecer o choque contra o muro. As áreas de escape - o espaço entre a pista e o muro - são reduzidas em pontos críticos como a saída da curva Tamburello. Em pontos como esse, falta também a caixa de brita - uma faixa de terreno recoberta de areia ou brita que serve para reduzir a velocidade de carros desgarrados da pista. Esses elementos poderiam ter atenuado a violência do desastre e eventualmente evitado a morte de dois seres humanos. Mas a tragédia só se consumou em Imola como resultado funesto das três circunstâncias. Por descaso, existem ainda pistas perigosíssimas, como a de Imola. Por economia, os carros se tornaram menos estáveis. E, graças à tecnologia, estão cada vez mais velozes.
Ayrton Senna não é o primeiro campeão mundial a morrer nas pistas. O circo da Fórmula 1 já enterrou outros dois. O italiano Alberto Ascari, campeão em 1952 e 1953, morreu testando seu Lancia em Monza, em 1955, e o austríaco Jochen Rindt perdeu a vida num acidente nos treinos do GP da Itália, em 1970, quando faltavam quatro provas para o encerramento da temporada. Ainda assim, acabou tendo seu título garantido duas corridas depois quando Émerson Fittipaldi venceu seu primeiro GP, nos Estados Unidos, e impediu que o belga Jacky Ickx faturasse os pontos necessários para ser campeão.
Uma ironia cruel fez com que a vida de um dos mais sólidos mitos do esporte, Jim Clark, tenha chegado ao fim num acidente da Fórmula 2, um circo de menor importância. Campeão do mundo em 1963 e 1965 e até hoje recordista em poles (1983), o escocês espatifou-se no circuito de Hockeinhein, na Alemanha, em 1968, correndo pela Fórmula 2. Clark - o escocês voador - só participava da corrida por insistência do seu amigo e dono da escuderia Lotus, Colin Chapman. De qualquer forma, estava ocioso. No mesmo dia da prova na Alemanha - 7 de abril - estaria sendo disputado o GP da Inglaterra de F 1, país em que ele não podia pôr os pés devido a problemas com o Fisco.
Nos anos 50 e 60, a bruxa estava solta nas pistas por um motivo muito simples: o equipamento de segurança era primitivo, os circuitos, verdadeiras corridas de obstáculos, e a organização das provas deixava tudo a desejar. Dezesseis pilotos morreram apenas em competições oficiais, entre eles o jovem mexicano Ricardo Rodriguez, a bordo de uma Ferrari nos treinos do GP do México. Ricardo e seu irmão Pedro (morto numa corrida de protótipos na Alemanha, em 1971) são mitos do automobilismo latino-americano e dão nome ao Autódromo Hermanos Rodriguez, da Cidade do México.
A possibilidade de uma morte violenta acrescenta à Fórmula 1 uma expectativa de torneio de gladiadores e explica, em parte, seu fascínio. Não é à toa que, durante três décadas, a categoria levasse a fama de "o esporte que mais mata". Isso nunca foi tão real como na década de 70. Ocorreram onze mortes em competições oficiais. Os motivos: os carros já tinham velocidades muito altas, mas a aerodinâmica, suspensão e mesmo os autódromos não acompanhavam o desenvolvimento dos motores. Os circuitos, desenhados para carros mais lentos, transformavam as corridas em arapucas letais. A estrutura dos carros era frágil, oferecendo pouca proteção aos pilotos em caso de acidente. O maior problema eram os tanques de combustível que explodiam com facilidade.
Acidentes como o do americano Peter Revson - herdeiro da multinacional dos cosméticos Revlon -, que morreu queimado em 1974 depois capotar várias vezes sua Shadow no circuito de Kyalami, na áfrica do Sul, eram a regra. Os pilotos fritavam diante dos espectadores e bombeiros impotentes. Com a bruxa à solta, o mitológico Jackie Stewart, três vezes campeão, abandonou as pistas em 1973 no final da temporada, chocado com a morte do francês François Cévert, uma das maiores promessas da F 1 e adorado pelas mulheres por seus olhos azuis e beleza juvenil.
Em 1978, o sueco Ronnie Peterson, ex-companheiro de Emerson Fittipaldi na Lotus, envolveu-se numa batida de vários carros na largada em Monza, acidente considerado o mais grave da história da Fórmula 1. A Lotus de Peterson voou sobre os carros acidentados, bateu no guard-rail e literalmente explodiu. O acidente acendeu a polêmica sobre a segurança dos carros e dos autódromos e pôs os pilotos em pé de guerra. Peterson foi a última vítima dos trágicos anos 70. Quatro mortes ocorreram nos anos 80. A mais dramática foi a de Gilles Villeneuve, nos treinos classificatórios para o GP da Bélgica, no circuito de Solder. O canadense era uma figura que despertava paixões, em doses iguais de amor e ódio, por sua maneira arrojada e perigosa de dirigir. Morreu tentando desesperadamente superar o tempo de seu companheiro de equipe na Ferrari, Jody Scheckter. Faltavam apenas quatro minutos para o encerramento do treino, a pole position era do francês Alain Prost, da Renault, mas Villeneuve estava na nona colocação e decidiu pisar fundo. Depois de chocar-se com outro carro, a Ferrari de Villeneuve deu uma volta sobre si mesma em pleno ar, arremessando o piloto canadense contra as telas de proteção da pista.
Nos anos 80, especialmente em virtude do aparecimento da cabine de segurança, a cápsula de fibra de carbono que envolve e protege o piloto, o número de mortes diminuiu para quatro. Os acidentes são contados às centenas, é verdade, alguns terríveis o bastante para marcar para sempre o rosto de austríaco Nike Lauda com queimaduras ou confinar o suíço Clay Regazzoni à cadeira de rodas. Mas ninguém morria num carro de Fórmula 1 desde 1986, quando o italiano Elio de Angelis perdeu o controle de seu Brabham a 270 quilômetros por hora durante testes de pneus no circuito de Le Castellet, em Paul Ricard. O carro voou cerca de 200 metros antes de se chocar contra o guard-rail e incendiar-se.
A morte do piloto, conhecido como "Príncipe Negro", não apenas pela fidalgia e correção para com os companheiros, mas também por ter feito carreira nos carros negros da Lotus, provocou uma das maiores rebeliões do circo. Em pé de guerra, os principais pilotos ameaçaram boicotar a corrida seguinte, o GP de Spa Francorchamps, na Bélgica, se não fossem adotadas medidas para aumentar a segurança das pistas. A revolta deveu-se, em parte, às circunstâncias do resgate depois do acidente. Com a equipe de salvamento perdida em confusão, o piloto foi retirado do carro em chamas pelos companheiros Alain Prost, Alan Jones, Jacques Laffite e Nigel Mansel. Medidas de segurança adotadas na época estavam inteiramente superadas pelo desenvolvimento do turbo, que dobrara a potência dos motores. Está na hora de pensar de novo em modificações na Fórmula 1. Para diminuir a velocidade - e aumentar a segurança.

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